A apreensão de drogas dentro de residência decorrente de “mero acaso” carece da exigência de justa causa (fundada suspeita) e se configura em prova ilícita, caso os agentes públicos não portarem mandado judicial ou não demonstrarem de forma inequívoca que foram autorizados a fazer a busca domiciliar.
Essa fundamentação foi aplicada por unanimidade pela 1ª Turma da 1ª Câmara Criminal do TJ (Tribunal de Justiça da Bahia) ao negar provimento a recurso do Ministério Público. O MP requereu na apelação a condenação de um homem absolvido do delito de tráfico de entorpecente.
“A entrada forçada na residência do réu se deu porque teria o mesmo fugido ao avistar a guarnição policial. Entretanto, pelo conjunto probatório, infere-se que não houve fuga, mas sim uma movimentação do apelado de retorno para o interior de sua casa, conforme relatado pelos próprios policiais“, observou o desembargador Luiz Fernando Lima.
Relator da apelação, Lima destacou que, nessa hipótese, “a prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato“.
Os policiais militares disseram que faziam uma “operação” na rua do acusado para coibir o tráfico, mas não fizeram referência a eventual prévia investigação, monitoramento ou campana. Também não mencionaram qualquer atitude suspeita, traduzida em atos concretos, tampouco a movimentação de pessoas típica do comércio de drogas.
Os PMs disseram não haver alvo específico na diligência policial. O MP se insurgiu contra a absolvição sob o argumento de que a diligência foi “legal e legítima”. Nas razões do recurso foi alegado que o recorrido estava em local conhecido como ponto de tráfico, fugiu para casa ao perceber os policiais e, mesmo assim, os “autorizou” a ingressar no imóvel.
Sem prova da suposta autorização, o MP teve os seus argumentos enfraquecidos ainda mais pelas declarações prestadas pelo réu em seu interrogatório judicial. Segundo o acusado, ele sofreu ameaça e permitiu que os policiais entrassem em sua casa mediante “torturação”.
Teses do STF e do STJ
As desembargadoras Ivone Bessa Ramos e Aracy Lima Borges seguiram o relator para reconhecer que houve violação de domicílio. Com base na teoria dos frutos da árvore envenenada (artigo 157 do Código de Processo Penal), o colegiado considerou nulas as provas, se baseando também em entendimentos de tribunais superiores.
Mencionados igualmente na fundamentação da sentença, um desses entendimentos citados pela 1ª Turma é o do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário 603.616 (RO), ao apreciar o Tema 280 em repercussão geral, de relatoria do ministro Gilmar Mendes.
O STF firmou a tese de que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados“.
Como relator do Habeas Corpus 598.051 (SP), julgado em de 2 março de 2021, o ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), estabeleceu diretrizes para a validação de incursões policiais que impliquem violação de domicílio. Ele propôs nova e criteriosa abordagem sobre o controle do alegado consentimento de entrada no imóvel.
Conforme o ministro, a autorização deve ser voluntária e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação. A comprovação da anuência incumbe ao Estado, mediante declaração assinada pela pessoa que consentiu, com a indicação de testemunhas do ato, sempre que possível, devendo ainda a diligência ser gravada por meio audiovisual.
Caso concreto
O réu foi preso em flagrante sob a acusação de tráfico, em 5 maio de 2019. Segundo os policiais, eles apreenderam na casa do apelado oito pinos e uma pequena porção de cocaína, 8,4 gramas de crack e 3,8 gramas de maconha. A ação penal foi distribuída à 2ª Vara de Tóxicos de Salvador.
A Defensoria Pública da Bahia, preliminarmente, requereu a absolvição do acusado em face da nulidade da prova por inobservância do princípio da inviolabilidade de domicílio (artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal). No mérito, postulou a improcedência da denúncia por insuficiência probatória.
A juíza Ádida Alves dos Santos acolheu a preliminar de nulidade. “É sabido que o crime de tráfico de drogas é de natureza permanente e, em princípio, prescinde de autorização judicial para o início da persecução criminal. No entanto, o alcance desta investigação é limitado e se mostra ilícito quando os agentes públicos violam domicílio sem fundadas razões que indiquem a prática de tráfico de drogas no seu interior“, sentenciou.
De acordo com a magistrada, em hipóteses como a dos autos, “a atitude suspeita do réu autoriza o policial abordar o indivíduo em via pública, mas, por si só, não o legitima a entrar no domicílio. A fuga isolada do suspeito não configura justa causa para mitigar o princípio constitucional da inviolabilidade do domicílio”.
Fonte: Conjur